O Andejo Vadio: maio 2011
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"I always wonder why birds choose to stay in the same place when they can fly anywhere on the Earth. Then I ask myself the same question."
(Harun Yahya)

domingo, 22 de maio de 2011

Expedição ao Fim do Mundo




É sempre difícil saber que título colocar em um texto e normalmente deixo isso pro final, extraindo do próprio corpo, sua cabeça. Dessa vez, inverti a ordem dos acontecimentos: comecei pelo título. Um título que já tinha guardado há muito tempo e que tinha um sabor todo especial, carregado de sentimento, que se aflorou no momento em que escrevi essa seqüência de palavras no espaço destinado à dar nome a um conto de fadas. Minhas mãos suadas começaram a tremer. Não podia identificar se meu peito iria explodir ou implodir e em minha cabeça, ao invés de palavras, lembranças.

Essa história começou muito antes de maio de 2011, sendo imaginada desde os primórdios de minha adolescência no ano 2000, quando comecei a sentir que o mundo me chamava a descobri-lo, e a ser escrita quando caiu a primeira gota de tinta no papel em 26 de julho de 2007, quando senti enfim que o momento havia chegado. Nesse dia, impetuosamente avisei meus pais; no dia seguinte deixei o trabalho e entreguei meu apartamento, e no terceiro, 28 de julho, liguei para meu amigo, Danilo e lhe disse: "Dae velinho! Lembra que eu te disse que um dia eu saberia que chegou a hora de viajar? Então, esse dia chegou, estou indo agora mesmo."

Com minha grande mochila já dentro do carro dos meus pais que com os olhos molhados me levariam à estrada onde arriscaria minha primeira carona, encontrei o Paquito, apelido do Danilo, na frente do Shopping Curitiba que incréculo me perguntava: "Está falando sério cara?  Caramba, sua mochila já está no carro? Putz, é um Demente mesmo! Boa sorte carinha!" - Lembra Danilo? Foi realmente assim ou minha imaginação estra distorcendo as coisas? - E assim a minha primeira carona, a dos meus pais até a beira da estrada - que ao final me levaram até o litoral onde tomei a balsa para a Ilha do Mel - se transformou no primeiro capítulo da história que hoje lhes conto.

Bom, hoje eu lhes conto um capítulo mais avançado da história da minha vida, da história sobre o que faço, da história sobre o que sou, e esse capítulo começa no dia em que desci das Montanhas de Bolson.

O interessante das viagens é que nossa vida se transforma em um filme de Hollywood, daqueles que damos risada e debochamos da inacreditável e inverossímil sucessão de desafios que os protagonistas tem que enfrentar. Não que eu esteja cercado de aventura e de mulheres bonitas lutando por minha vida - tenho que assumir que alguns dos desafios são altamente entediantes e nada interessantes  - mas mesmo assim, esses desafios têm que ser superados. No caso, cruzar o sul argentino de oeste a leste, através dos 822 km de estradas quase desertas que separam a cidade andina de El Bolsón e a cidade costeira de Puerto Madryn. 

Depois de uma bela caminhada matinal, dessa vez com todo o peso da mochila, começei a saga ao fim do mundo, com escala no paraíso das baleias. Com algumas caronas rápidas cheguei a pequena cidade de Tecka, perdida no meio do cenário desértico que tanto encontrei no sul argentino. Neste local, fiquei por várias horas esperando em vão por alguém que me levasse rumo ao oriente. Com receio às baixas temperaturas, caminhei até o único posto de gasolina da cidade para me abrigar em seu interior e ali, por sorte, encontrei um caminhoneiro que passaria por Puerto Madryn no dia seguinte, perfeito! Paramos para dormir em uma cidade ainda menor chamada Los Altares e combinamos que as 4 e meia da manhã seguiríamos viagem, fui então buscar um local para dormir. Encontrei um depósito aparentemente abandonado e imaginei que até as quatro da manhã ninguém me encontraria ali, até porque a escuridão do local não permitiria visualizar meu saco de dormir jogado em um dos cantos, e assim aconteceu. Tremendo de frio e com dor nas mãos, fato corriqueiro nesses dias frios, guardei meus equipamentos e reordenei a mochila e pouco antes da hora combinada fui buscar o caminhão, e não o encontrei. Xingando até a 4ª geração do caminhoneiro - ascendente e descendente - que além de haver me deixado para trás, fez-me levantar num frio extremo às 4 da manhã, fui novamente para o meu discreto canto onde esperaria amanhecer.

Fui supreendido por um surpreso frentista que me viu com a fraca luz de seu isqueiro, e assustado deixou o depósito enquanto me fingia de morto, completamente fechado e imóvel dentro do saco de dormir - tinha certeza que voltaria em pouco tempo com a polícia, rs! Isso não aconteceu e poucas horas depois seguia de carro a Trelew, onde tomei um ônibus para percorrer os poucos quilômetros restantes até a cidade lar de Adrian, que me recebeu em sua casa pelos dias que estive em Puerto Madryn.

Importante cidade às portas da Península de Valdez, berçário de centenas de baleias francas e casa de colônias de lobos marinhos, orcas e golfinhos, possui um cenário composto por areia e vegetação baixa - árvores não conseguem desenvolver-se pela força dos constantes ventos que assolam o lugar. Há na cidade um pequeno e extremamente bem cuidado museu de história dos povos nativos e de ciências marinhas que possui um interessante exemplar de lula gigante. Próximo objetivo: Ushuaia.

Como era de se esperar, o caminho para o Fim do Mundo não podia ser curto, e demorei 3 dias para percorrê-lo. Com distintas caronas passei por cidades petroleiras como Comodoro Rivadavia e Caleta Olivia passando mais tarde uma noite em Fitz Roy, para mais tarde viajar por mais um dia completo até Rio Gallegos, onde passei uma incômoda noite na loja de conveniência de um posto, o que me foi conveniente, visto que aí pude encontrar alguén que me levasse a Rio Grande, a somente 200 km de Ushuaia. Entretanto a sorte não durou tanto.

Quando chegamos à fronteira chilena, o generoso caminhoneiro, marido de duas mulheres, teve problemas com os papéis - da carga e não dos casamentos - e teve que voltar a última cidade argentina antes da terra do fogo, deixando-me assim ali na fronteira para tentar a sorte. Com duas caronas mais cheguei ao anoitecer a Rio Grande, e já cansado e atrasado em 2 dias, tomei um ônibus até Ushuaia, chegando um pouco depois da meia noite à cidade mais austral do continente. Fui recebido desta vez por Valentin, um guia turístico morador da ilha. Novamente Couch Surfing me ajudou a conseguir abrigo nas congeladas terras do extremo sul, a somente 1000 km do continente antártico.

Um de meus mais grandes sonhos e objetivos finalmente cumprido, depois de vários anos, vários desafios, tristezas e felicidades, desde aquele inverno em 2007 quando saí das rodas de socialização forçada com nada mais que 130 reais no bolso. Por mais que Ushuaia seja o fim do mundo, não significa que para mim seja um fim, mas com certeza é um marco, uma vitória, uma prova, para mim mesmo, de que eu fui e sou capaz de realizar os loucos planos, inacreditados e repreendidos por toda uma sociedade, que nada mais eram do que sonhos infantis.

Falando agora de maneira prática e objetiva, foram 17 meses para chegar aqui, vividos de maneira completa. Toquei o fundo do mar, aprendi palavras em hebraico, caminhei sozinho por montanhas nevadas, acariciei tigres, fui tatuado por cerca de 8 horas consecutivas e vi o colorido do nascer e pôr-do-sol em diferentes latitudes. Vaguei por horas em estradas desertas tendo o horizonte como única companhia. Vi o céu mais estrelado já visto em uma noite no alto dos Andes e transformei o espanhol em meu idioma oficial. Toquei violão em bares da patagônia estragando músicas de Chico Buarque, Toquinho e Tom Jobim. Fiz amizades sinceras e para toda uma vida.

Entretanto nem tudo é lindo. Sou a causa de incontáveis lágrimas escorrendo pelos olhos de minha mãe, de noites despertas de meu pai. Encontrei o cachorro de minha infância ainda quente e de olhos abertos estirado imóvel no chão. Perdi as primeiras palavras e passos de meus sobrinhos que crescem velozmente e o que mais me doeu, despedi-me de minha última avó, que nos deixou em setembro do ano passado.

Porém o sonho ainda não acabou. Apenas vou deixar de ser do contra e vou enfim seguir para onde a bússola aponta e transformar em realidade o que trato de imaginar a cada noite. Escrevo neste momento de uma nevada Punta Arenas, capital da última região chilena, onde passei uma semana em companhia de novos velhos amigos, Anahi e Dusan, mas o que segue agora? Torres del Paine, Carretera Austral, Isla de Chiloé, Deserto do Atacama, Salar de Uyuni, Machu Picchu. Ver o sol se pôr sobre o mar do Pacífico, conhecer as praias do Caribe, ouvir um reggae na  Jamaica e dançar uma salsa em Cuba. Descobrir os segredos do holandês falado no Suriname e quem sabe conhecer a base de lançamento européia na Guiana Francesa. Ao contrário, o sonho está só começando e eu acabei de ser aprovado no primeiro semestre da universidade da vida.

E me encanta a ideia de não saber como tudo isso vai acabar.

Um grande abraço a todos,

Andejo.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Nas Montanhas de Bolson


Olá a todos.

Este relato é a descrição de um trekking que fiz nas montanhas pertencentes à Cordilheira dos Andes, nos limites da cidade de El Bolson, na Patagônia Argentina. É bastante longo, mas tenham certeza de que ocultei vários detalhes importantes e para mim inesquecíveis para tentar deixar este relato um pouco mais conciso. Também está editado de um modo diferente, com fotos e vídeos que exemplificam a história. Sugiro que leiam com tempo.

Um Abraço,
Andejo.
***

Terça-Feira. Trajeto decidido. Clube de Montanha avisado. Previsão do tempo: Céu azul até sábado. Mochila pronta, deixarei mais da metade de minhas coisas no camping, impossível subir com toda a mochila. Enfim meu primeiro verdadeiro trekking. A partir de amanhã passarei 3 dias nas montanhas de El Bolson, caminhando sozinho pela Cordilheira dos Andes.  Pego os mapas e estudo um pouco melhor o caminho antes de ir dormir. Deixo tudo bem empacotado e torço para que estejam da mesma forma quando eu voltar. Tudo pronto, acho que já posso ir dormir, novamente em cima da mesa, com meu saco de dormir. Desejo boa noite ao céu estrelado.

Acordo com um barulhinho gostoso. O que pode ser? Chuva, que droga. São 4 da manhã, ainda está escuro, então volto a dormir. Agora são 8 horas da manhã, segue noite, segue chovendo. Por isso acordava todos os dias tão tarde no hostel em Bariloche, aqui o dia não amanhece antes das oito, ainda bem que já passei da minha época de escola. Planos cancelados. Não vou subir por trilhas desconhecidas com chuva e frio, muito frio. Vou esperar até meio dia, horário limite para começar a subida de 6 horas até o refúgio Hielo Azul. Nada feito, a chuva continua. Deixo pra amanhã ou cancelo a subida?Caramba, seis da tarde e o céu começa a limpar. Sim ou não? Sim, e agora.

Agarrei minha mochila e comecei a andar, vou acampar ao pé da trilha para poupar tempo amanhã, quero começar a subir antes de amanhecer. Caminhei e caminhei, ruas de terra e subidas implacáveis e as primeiras paisagens começaram a aparecer, como a árvore amarela que se destaca sobre o rosa das nuvens iluminadas pelo sol ao entardecer ou leito do rio Azul visto pela primeira vez em todo seu explendor.

Álamo

Uma das diversas faces do Rio Azul
Noite. Sigo caminhando sem nenhuma visibilidade. Noite sem lua, a lanterna é necessária. Enfim chego ao camping que buscava, sabia que estava fechado, mas tinha esperança de poder cruzar por dentro dele para não me perder no bosque durante a noite, e recebi um belo não como resposta. Após pedir, argumentar e quase implorar, achei o argumento correto, 12 pesos.  Depois de oferecer propina ao responsável pelo camping ele me deixou cruzá-lo, dando-me instruções claras para não dormir dentro da propriedade já que era proibido.  Mas eu paguei, não? Com uma névoa bastante fechada, que refletia a luz da lanterna e não me deixava ver a mais de 3 metros, decidi acampar essa noite abaixo do telhado do prédio da administração. Cozinhei um delicioso arroz com atum e me preparei para dormir. O trekking já começou.

Novamente oito da manhã, novamente escuro. Preocupo-me, afinal não vejo as estrelas. Frio cortante, minhas mão doem, muito. Tenho até certa dificuldade de desarmar a barraca por isso. Quando termino tudo, o dia amanhece e descubro que minha preocupação procedia, o dia estava completamente nublado. Entretanto havia caminhado duas horas e meia até ali e não estava disposto a voltar atrás. Caminhei por uma trilha rápida até uma ponte que tentava me convencer a não seguir a diante, não conseguiu, às oito e meia da manhã comecei a trilha.

Lembro-me do meu “primeiro” dia de viagem, quando subi o Monte Olimpo, no parque Marumbi. Parece que a subida será semelhante. Poucos passos depois percebi que por mais que não estivesse chovendo, a trilha estava muito molhada e escorregadia. Quebrei um galho para usar como bastão de caminhada. Desliguei o celular para economizar bateria e segui caminhando e depois de uma curta, mas difícil, subida cheguei a uma parte plana e aí sentei para guardar todo o equipamento de frio que tinha tirado depois de aquecer o corpo - que alívio por minhas mãos não estarem mais congelando. Infelizmente a parte plana não durou muito e comecei novamente a subir, dessa vez por mais tempo, mas com uma inclinação menor. Caminhei por muito tempo e tive uma incrível surpresa quando comecei a ver o céu. Eu estava dentro das nuvens. Subi um pouco mais e quando já tinha ultrapassado as nuvens e tinha somente um céu azul sobre mim, parei para comer, feliz de não ter desistido quando vi o tempo fechado. Devo estar próximo do destino. Quando ligo o celular, a surpresa: apenas duas horas. Então, de acordo o cara do clube de montanha, ainda tenho quatro horas de caminhada pela frente, que desanimo!

Sigo subindo e logo encontro outra surpresa, a água empoçada no chão estava congelada, melhor eu não molhar os pés! Encontro um riacho e lavo o rosto e a água estupidamente fria que fazia seu caminho morro abaixo e isso renovou meu espírito e contente segui morro acima até encontrar o Mallín de Palos.  Nada mais era que um riacho pantanoso com cerca de 20 centímetros de profundidade, entre barro e água, que eu teria que atravessar para continuar. O fato é que a água estava congelada e o caminho a seguir era caminhando por troncos cobertos de gelo e extremamente escorregadios. Apoiando-me em meus bastões de caminhada segui cuidadosamente e feliz encontrei uma placa avisando que o refúgio estava a 2 horas e meia dali, ou seja, na realidade me faltava muito menos que as 4 horas que estava imaginando!

Bosque Andino coberto de gelo

Rio congelado
A paisagem já estava mudando e o denso bosque dava lugar a uma floresta de árvores grossas e altas. Riachos em grande quantidade exigiam que eu saltasse todo o tempo por pedras para não molhar os pés, o que seria muito incômodo levando em consideração a temperatura da água e do dia. O caminho estava relativamente bem sinalizado até chegar a três grandes árvores caídas onde nenhum caminho era aparente, e para ajudar não via a sinalização que deveria estar ali em algum lugar. Após muito procurar, encontrei a continuidade da trilha, e após segui-la por mais alguns minutos, novamente a paisagem começou mudar. Um bosque congelado de árvores sem folhas estava ao outro lado do pequeno riacho e ao caminhar por pouco tempo com esse bosque à minha direita, visualizei a atrativa casa de madeira que soltava fumaça pela chaminé. Cheguei ao refúgio Hielo Azul após 4 horas e 20 minutos e com um dia lindo e ensolarado preparei meu primeiro almoço a montanha e comi um delicioso arroz com atum (sim, de novo).

Refúgio Hielo-Azul
Conversei com Luciano, o Refugiero, e me explicou que eu teria uma caminhada de 3 horas, ida e volta, até o pequeno glaciarHielo Azul, que fica a 1700 metros de altitude, 400 a mais que o refúgio de mesmo nome, e sem demorar, continuei a caminhar. Subida muito difícil, ao menos para mim. O chão era composto somente por pedras soltas, ora grandes, ora quase como terra, transformando o terreno em armadilhas naturais que tentam te fazer escorregar e torcer o tornozelo, sem contar a inclinação que me fazia sentir a sensação que não poderia subir sem escorregar até lá embaixo novamente.

Pés enterrados na neve, pela primeira vez.
E, finalmente, neve. Meu primeiro contato com o desconhecido estado da água foi primeiro com pequenas porções que conforme eu subia aumentavam gradativamente até que afundava meu pé até quase a altura do joelho. A inexperiência com a neve me fez escolher caminhos bastante difíceis para desviá-la que me levaram a perigosas rochas cobertas de gelo que tive que escalar para chegar ao glaciar, mas a primeira visão valeu a pena.  O lago de um azul esverdeado formado pelo glaciar de gelo azul formava uma piscina perfeitamente localizada dentro de um poço na montanha nevada. 

Glaciar Hielo-Azul e lago formado pelo degelo.
Não pude escapar, para chegar à margem tive que passar por grandes trechos de neve, e o medo do desconhecido passou rapidamente a fascínio e desci esquiando com minhas botas pela neve endurecida. Depois de novamente lavar o rosto com a água congelante subi correndo,temendo que inesperadamente meu pé afundasse vários centímetros e acabasse me machucando, mas felizmente isso não aconteceu. Agora, como um expert em neve, desci escorregando por todo o caminho, o que facilitou, e muito, minha volta ao refúgio.

Acampar, 15 pesos, sem direito a banho, ou usar o aconchegante refúgio. Dormir em uma cama no refúgio com direito a banho quente e desfrutar de todas as comodidades que isso incluía – usar a cozinha e a parte interna do refúgio constantemente aquecida – 50 pesos. A diferença não era muita e com muita dor no coração escolhi... Acampar. Estou em constante contenção de despesas, especialmente depois do tanto que gastei em Bariloche! Negociei e consegui dormir no quincho por 20 pesos – não sei uma palavra equivalente em português, mas seria o equivalente a churrasqueira, ou uma área externa coberta destinada ao lazer. Neste caso, área coberta e fechada. Tentei sem sucesso acender a lareira, as madeiras que encontrei estavam completamente molhadas, e sem algo pra começar um fogo que fosse suficiente para secá-las, tive que torcer para que todas minhas roupas somadas ao saco de dormir fossem suficientes para passar a noite.

Indicadores de trilha

Foram, e no outro dia continuei a trilha que terminaria em outro refúgio chamado Cajón Azul. Passei novamente pelo bosque de árvores secas congeladas e logo de cara encontrei um obstáculo digno de ser comentado: uma ponte congelada sobre um rio profundo o suficiente para não poder atravessá-lo. Essa ponte nada mais era que um tronco com um corrimão feito de troncos finos, seguido de dois pedaços de madeira sem corrimão algum. Temeroso, provei o tronco para ver quão escorregadio estava e verifiquei que seria difícil ficar de pé nele. Subi e desci pela margem do rio buscando algum outro ponto de travessia e descobri que as poucas pedras que permitiriam a travessia estavam também congeladas e ainda mais perigosas que o tronco. Sem escolha para seguir segurei firme com as mãos sem luvas o corrimão coberto de gelo e vagarosamente cruzei o rio. Ainda na metade do tronco minhas mãos doíam com o frio, mas em nenhum instante me atrevi a soltar minha única esperança de permanecer em pé.

Ponte congelada

Zoom do Corrimão
Superado outro desafio, seguiu-se uma trilha bastante íngreme e escorregadia, entretanto curta e rápida que me levou a um refúgio intermediário chamado Natación. Essa trilha, por mais que curta, esconde lindas paisagens como bosques, lagos e campos verdejantes que pareciam tão cuidados quanto campos de futebol. Entretanto nenhuma dessas paisagens é comparável à do refúgio às margens do lago de mesmo nome e foi aí que tive o prazer de cozinhar meu simples almoço.Inesquecível, assim como indescritível.

Cozinhando em completa paz.

Lago Natación
Não havia alcançado ainda meu objetivo nesse dia e depois de desfrutar macarrão com sopa “Quick”, segui o mapa que descrevia o próximo trecho como “Bajada Pronunciada”. Nunca senti tanto medo em minha vida.  O caminho não era tão bem sinalizado quanto antes, e a todo o momento tinha a impressão de estar perdido. A trilha cada vez mais fechada e com espinhos raspava meus braços, pernas e mochila até que cheguei até a parte mais difícil. O caminho era estreito, muito íngreme e escorregadio – o degelo da montanha transformou a trilha em um pequeno riacho. Grandes pedras cobertas de gelo e água que descia montanha a baixo tinham que ser escaladas e o fato de estar sozinho com uma mochila de aproximadamente 15 quilos complicava ainda mais a situação. Por diversos momentos rezei ao acaso para que a trilha não se complicasse ainda mais, porque não sabia se seria capaz de voltar pelo mesmo, e único, caminho. Por outros, duvidava que estivesse no caminho certo não acreditando na dificuldade deste trecho. Para ajudar, torci levemente o joelho direito e a dor que incomodava, dificultava ainda mais as coisas. Devagar e seriamente temendo por minha vida – um escorregão poderia ser fatal visto que seria uma queda bastante grande, e caso não fosse, dificilmente seria encontrado, visto que estava só e ninguém saberia a localização exata de meu desaparecimento –superei esse trecho agarrado à baixa e densa vegetação dessa parte das montanhas, muitas vezes compostas por plantas cheias de espinhos. Aliviado e cheio de adrenalina, logo após completar esse trecho e o caminho voltar a ser um pouco mais simples, sentei-me por cerca de quinze minutos esperando o coração voltar a bater em seu ritmo natural. A razão e a emoção brigavam entre si com uma mistura de incredulidade e felicidade por haver realizado tal façanha, que pode ser ridiculamente fácil para alguns, e pensava até que ponto nós corremos riscos em busca de superar nossos limites.

Acreditando que havia sido demasiado lento apertei o passo no resto da caminhada até Cajón Azul. Cansado, em certo momento me desequilibrei com o peso da mochila e tive que me jogar no chão para não cair de outro lugar com desnível considerável. Mas, para minha surpresa fiz o caminho em 2 horas e 20 minutos, tempo menor que o previsto que variava entre 3 e 4 horas, em que passei por lindas paisagens, entre elas as águas claras do rio Azul.

Rio Azul entre as pedras.
Esse refúgio era impressionante e tinha uma estrutura bastante completa. Seu dono vivia ali com a família há 30 anos e com muito trabalho construiu uma fazenda no meio das montanhas, completamente isolado da civilização. Fui muito bem recebido, entretanto decidi novamente dormir no quincho para economizar mais alguns pesos – o problema era que esse era aberto. Felizmente dessa vez fui capaz de fazer fogo que durou toda a noite e me aqueceu de forma intensa e contínua. Nesse lugar creio que tive a mais linda visão do céu. A noite escura e sem lua, sem uma nuvem ou neblina somada à falta de luz da fazenda sem eletricidade, fazia com que o céu ficasse congestionado, e quase podia perceber as estrelas se empurrando em busca de espaço. E escutando apenas o crepitar do fogo que me iluminava e me fazia superar a temperatura de aproximadamente 6° negativos, dormi completamente fechado em meu saco de dormir.

O mais difícil já havia passado e meu último dia nas montanhas foi tranquilo. Mesmo sentindo um pouco meu joelho fiz uma curta trilha até o nascimento do Cajón, que era um local onde o plano e raso rio de cerca de 30 metros de largura passava todo por um espaço de um metro e meio e com força esculpiu as rochas formando em seu caminho dois paredões de 40 metros de altura.

Antes de começar o caminho de volta fui presenteado com um pão com linguiça e depois do almoço, comecei a volta a El Bolson. Cantarolava feliz “eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou, pararatibum, pararatibum” e caminhava rápido e despreocupado. As trilhas não eram difíceis e ainda passei em dois refúgios pelo caminho, La Tronconada e La Playita, ambos muito lindos e em perfeita harmonia com a natureza. 

Mais uma das perigosas pontes.
Após cruzar mais quatro pontes suspensas, todas em péssimo estado, escorregadias e balançando muito, cheguei a última e longa subida até o povoado de MallínAhogado, a 13 km de El Bolson. Decidi não esperar o ônibus, voltei caminhando torcendo para conseguir uma carona, e assim aconteceu. Uma mulher, com suas duas filhas, me levou em sua caminhonete até a pequena cidade, que sem dúvida ficará marcada para sempre em minhas lembranças, como palco de uma aventura de superação contínua, reflexão, descobertas e interação com a natureza.

Um grande abraço a todos e até o Fim do Mundo.

Andejo. 

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Israiloche


Enfim cheguei ao jardim de inverno brasileiro. Somente de inverno. No outono, San Carlos de Bariloche é um dos muitos pontos constantemente visitados por israelenses recém saídos das forças armadas israelenses. Assim como aconteceu em Rosário, na província de Santa Fé, em Bariloche encontrei dezenas de Judeus vindo de Israel.

Não sei se já comentei sobre isso por aqui, mas o serviço militar em Israel é, como no Brasil, obrigatório. A diferença é que além de ser um exército ativo, sempre atento aos confronto com palestinos e muçulmanos na faixa de gaza e com seus países vizinhos e inimigos,  todo jovem israelense serve ao país por ao menos 2 anos, se for mulher e 3 anos, caso seja homem, isso se não forem oficiais. Outra diferença é que são bem pagos por isso. Graças a isso, ao deixar o exército, é costume sair a viajar pelo mundo, e graças aos baixos preços, Ásia e América Latina são os lugares escolhidos para viagens que variam entre 4 e 18 meses.

Isso faz com que sejam maioria em quase todos os lados - no hostel que fiquei eram quase a metade dos hóspedes, enquanto que no quarto que fiquei, era o único que não pertencia à religião, que segue à Tora ao invés da Bíblia cristã. Interessante troca de culturas. Estive acompanhado de pessoas de uma religião distinta durante um feriado importante, ao qual não podiam comer pão, macarrão e coisas do tipo por 1 semana, em referência à fuga de seu povo do Egito, quando não tiveram tempo de deixar o pão crescer, e tiveram que deixar as terras de faraós sem o básico alimento.

Mayan, Gil, Yana, Einat e Maytal são exemplos da miscigenação desse antigo povo recém unido em um estado próprio. Meus novos amigos são de descendência americana, asiática e africana, unidos todos por algo que é uma mescla de cultura e religião, o Judaísmo. Com eles passei meus dias na linda cidade andina, onde toquei pela primeira vez pequenos e efêmeros flocos de neve, subi montanhas que eram nada mais que mirantes naturais, visitei museus interessantes e aproveitei, e muito, a noite argentina.

Construída às margens do Lago Nahuel Huapi, a fria cidade tem uma linda natureza, mas me decepcionei um pouco com a arquitetura da cidade que nada se parece as lindas cidades que havia passado nos últimos dias como Junin e San Martin de los Andes e Villa la Angostura. A cidade nada tem de elegante e suas belezas não são mérito das mãos humanas.

Uma dessas belezas, o Cerro Campanário, é o mirante que citei a pouco e aí estive duas vezes interessado na vista do entardecer, e mesmo perto do congelamento, na segunda vez aguentamos firme até quase o anoitecer, quando descemos a montanha pelas trilhas no meio do bosque. Também tomamos um delicioso submarino - leite quente com uma barra de chocolate - em um lindo café no cume da montanha. Definitivamente um lugar mágico que me inspirou a comprar os primeiros postais da viagem e que viria a escrever após um outro momento de inspiração que ainda não vem ao caso.

Como sempre, a companhia sempre é importante na apreciação de um momento, e esse grupo de amigos que me ensinou as primeiras palavras em hebraico, foi essencial tanto nas fotos no alto do morro quanto em toda minha estadia em Bariloche, e são em grande parte responsáveis por minha crescente vontade de visitar a Terra Santa. 

Conheço 3 tipos de pessoas durante minha viagem: as que com certeza voltarei a ver, as que com certeza não voltarei a ver e as que quem sabe voltarei a encontrar um dia, e apesar da vontade que tenho de que pertençam ao 3º grupo, tenho a impressão que pertencem ao segundo. São pessoas que quando se vão, deixam um pouco de si, assim como levam um pouco de ti, e se meus olhos podem não voltar a vê-las, de minhas lembranças não sairão jamais.

Fui indagado por uma amiga no messenger sobre quais eram minhas novidades e como resposta lhe escrevi: "Eu continuo com minhas histórias de caronas, aventuras, paisagens incríveis e paixões de 4 dias", e divertidamente isso não me cansa, por mais que sinta falta constantemente de minha família e de minhas amizades, de uma casa e de comodidade. É uma rotina sem repetição, cada carona tem sua história, cada aventura gera adrenalina, cada paisagem mostra o céu de uma maneira diferente e cada efêmera paixão tem a capacidade de te fazer sentir em casa por um curto período de tempo.

Por mais que minha estadia em San carlos de Bariloche tenha sido uma vida, esta teve um fim para o início de uma outra, que iniciou com 2 caronas até o mágico lugar chamado El Bolsón. Coberta sempre por uma névoa gerada pela diferença de temperatura no poço rodeado de altas montanhas onde está localizada a cidade, esse pequeno aglomerado de pessoas é conhecido pelo seu misticismo e ecletismo, e é sempre receptivo a incompreendidos de todos os lados.

Paraíso natural que serve de casa para uma infinidade de artesãos, tem em sua feira uma das principais atrações locais, entretanto, para os curitibanos atrevo-me até a dizer, a feirinha semanal do largo da ordem é igual ou superior, em tamanho e variedade. Entretanto digo, não somente aos mesmo curitibanos, como a todos aqueles que lhes pode interessar, que o espírito das florestas de El Bolsón é único, traiçoeiro e pacificador e o trekking de 3 dias e meio, e mais de 30 km merecem um espaço privado e especial em minhas lembranças, um capítulo em um futuro livro e indiscutivelmente uma postagem única e exclusiva.

Assim sendo me despeço avisando que já tenho o texto escrito, e que o disponibilizarei para leitura em poucos dias aqui mesmo no blog e lhes adianto que a postagem que seguirá será redigida por alguém que já haverá passado pelo fim do mundo. 

Enfim minha viagem está tomando proporções de uma grande aventura e deixando de ser uma "viagenzinha" de apenas 15 meses!

Um grande abraço a todos e até breve,

Andejo.