O Andejo Vadio
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"I always wonder why birds choose to stay in the same place when they can fly anywhere on the Earth. Then I ask myself the same question."
(Harun Yahya)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Volta do Filho Pródigo... ou Quase!

Carretera Austral

Uau! Faz tempo, não? Mais de dois meses sem dar sinal de vida por aqui e nesse tempo muita coisa aconteceu! Preparem-se para uma longa postagem.

Esse tempo afastado do blog se deve principalmente a uma grande mudança de pensamento. A saudade de casa começou a apertar e já não podia desfrutar como antes as novidades que esse mundo de aventuras me trazia e por muito pouco não abandono a viagem e volto pra casa mais cedo.

Senti que o aprendizado já não era mais o mesmo do começo dessa viagem, quando sentia que a cada minuto me enchia com mais e mais sabedoria e comecei a indagar se valia a pena seguir longe de tudo que abandonei para seguir em uma viagem sem aprendizado, por puro turismo.

Pensei e repensei o que estou fazendo inúmeras vezes, sentado, caminhando de um lado para o outro, conversando sozinho em voz alta ou pedindo conselhos para desconhecidos. Cheguei à conclusão de que já cumpri um dos objetivos da viagem: a evolução pessoal. Essa evolução não tem limites e espero não deixar nunca de evoluir, entretanto creio que já alcancei um novo patamar em minha escada ao nirvana e com isso já me sinto satisfeito. Por outro lado, olhava o mapa e não me sentia satisfeito. Mesmo já havendo percorrido quase metade de toda a extensão da América do Sul, visitei apenas 4 países, e sentia que estava muito longe de haver cumprido esse segundo objetivo que era conhecer distintas culturas e países. Mas o que fazer? Os 3 anos previstos para terminar toda a América Latina me pareciam demasiado longos e já não me estimulavam da mesma maneira. Que difícil! Porém, encontrei a solução.

Em primeiro lugar, coloquei um prazo. Quero voltar ao Brasil até o final de agosto do ano que vem, para o casamento de um amigo no qual serei padrinho. A principio iria ao casamento e depois voltaria aonde estava para seguir com a viagem, mas essa me pareceu a oportunidade perfeita de colocar um limite nessa minha loucura.

Definida a data de volta ao lar, coloquei novamente meus olhos no mapa: ainda falta muita coisa e esse prazo de 1 ano não será suficiente para ver tudo. Esse novo fato foi resolvido com 2 medidas, sendo a primeira mais dolorosa: Cortei dos planos a América Central e o Caribe. São lugares que eu gostaria muito de conhecer. Cuba, Jamaica, Panamá, Trinidad e Tobago. Mas alguém que quer crescer em diferentes áreas tem que tomar determinadas decisões. A segunda medida foi acelerar o passo. Não pararei mais para trabalhar a menos que sejam casos de extrema necessidade, não pararei por tanto tempo em cada lugar e tentarei visitar menos cidades em cada país. Com isso espero poder recorrer o que me falta da América do Sul no prazo estipulado. Então ainda podem me esperar no Paraguai, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Infelizmente, o resto ficará para uma próxima vez.

Óbvio que não cheguei a essas soluções em uma tarde de reflexão, e todos esses pensamentos me acompanharam por todo o sul do chile, desde Chile Chico na já distante Carretera Austral até Santiago, lugar de onde lhes escrevo agora e são as histórias deste caminho que conto a vocês.

Já comentei com vocês superficialmente que estive em Chile Chico e que fui recebido por Ferdinando no dia de seu aniversário. Nesse já distante 18 de Junho, Ferdinando tinha algumas coisas que organizar e me perguntou se eu gostaria de acompanhar seu primo que iria remar no lago. Prontamente disse que sim e com mais um amigo fomos ao imenso lago General Carrera. Com as águas congelantes, nos cuidávamos para não virar o caiaque, erro que poderia ser fatal dada a temperatura da água. remamos até algumas ilhas e por ali paramos por alguns momentos. O primo de Ferdinando, tirou uma garrafa de Absolut de pera e algumas pedras de gelo e relaxamos em nossos caiaques.

No dia seguinte, como também já comentei, Ferdinando me convidou a viajar com ele pelas cidadezinhas às margens do lago, já que ele teria que fazer esse caminho a trabalho e eu tinha a intenção de percorre-las. Jogamos as mochilas no carro e saímos. Viagem fascinante. A Carretera Austral é sem dúvida nenhuma a estrada mais linda que conheci. Quase toda de terra, cruza campos, corta montanhas e acompanha o lago em muitos trechos e coexiste de maneira fantástica com a paisagem da região. Parece um outro mundo. Em 4 dias visitamos Mallin Grande, Puerto Guadal, Rio Tranquilo, Bahia Murta, Villa Cerro Castillo, Puerto Ibáñez, Puerto Sanchez quando enfim chegamos a Coyhaique. Fui hospedado na cidade por outro primo de Ferdinando, visto que a casa de sua namorada, que também morava na cidade, era muito pequena. Gastei vários dias na cidade e fiz vários amigos. Salsa, churrascos e encontros na casa de um ou de outro marcaram meus momentos neste local. Quase parei aí mesmo para trabalhar, mas infelizmente a proposta alí não foi boa o bastante.











Despedi-me então de Ferdinando e de Giovanna, sua namorada, ambos bons amigos depois dessa curta mas intensa convivência e segui para o norte. Esta parte da viagem foi marcante pela pouca quantidade de veículos que transitavam pela estrada. Esperei inúmeras vezes por horas à beira da estrada sem ver ao menos um carro. 


De Coyhaique a Puyuhuapi fui com duas caronas - a segunda com um motorista que passou todo o caminho tomando piscola, uma Cuba Libre feita com um destilado muito comum no Chile e Peru. Estava preparado para pedir para descer em qualquer lugar quando percebesse qualquer sinal de embriagues, o que curiosamente, não aconteceu. Passei uma noite em Puyuhuapi em uma simpática e muito barata hospedagem, mas no dia seguinte esperei horas até conseguir uma carona, o que me fez avançar muito pouco nesse dia. Cheguei em La Junta super cansado e com quase nada de dinheiro - não existem caixas eletrônicos nessa parte do mundo - e o único local que aceitava cartão era um caro hotel, ao menos para mim. Com o frio apertando, com medo de gastar o pouco dinheiro que tinha e juntando com o momento psicológico que vivia, gastei boa parte de minhas economias no hotel. Um longo banho quente, uma sopa cozinhada no banheiro, uma cama superconfortável e um filme na tv a cabo, desfrutei as comodidades de um mundo estranho para o meu tipo de viagem.


Mais uma longa espera no dia seguinte, o que já era de praxe na Carretera Austral, mas com um golpe de sorte subi a um caminhão guiado por Edson. Um cara simples que subiu na vida com muito trabalho e estava fazendo essa viagem ao sul porque um de seus motoristas havia ficado doente. Ia a Santiago, garantindo assim minha chegada a Chaitén ainda nessa noite. Esse trecho da viagem foi muito agradável e conversamos muito sobre diversos assuntos nas longas horas percorridas em estrada de terra, quando em fim chegamos a uma cidade praticamente fantasma.



Chaitén foi completamente evacuada pouco antes de ser soterrada pelas cinzas do vulcão de mesmo nome em 2008 e dos 7000 habitantes originais, apenas 700 voltaram à cidade até o momento. A eletricidade voltou a cerca de 6 meses e não faz muito tempo que os teimosos habitantes dessa cidade voltaram a ter água encanada utilizável. Acuso esses moradores de teimosia pelo fato de que nunca deveriam haver voltado à cidade visto que o governo chileno iria reconstruir a mesma em um outro local próximo, ação ignorada pelos poucos habitantes que voltaram ao local da catástrofe. Esses 10% da população não reavivaram Chaitén, que ainda preserva as características de cidade fantasma, com pouquissímas casas habitadas, partes soterradas por vários metros de cinza vulcânica e vegetação devastada. Passamos a noite na cidade e na manhã seguinte subi a Don Baldo, a grande balsa da Navimag para cruzar a mágica ilha de Chiloé, sempre acompanhado pela imponente vista do vulcão Corcovado. Mas essa é uma história essa que ficará para a próxima postagem.


    
Grande abraço a todos,

Andejo.

sábado, 2 de julho de 2011

Carretera Austral e O Casamento de Pato Diaz

Carretera Austral

Carretera Austral, estrada que liga a Villa O’Higgins a Chaitén, construída no meio de montanhas, bordas de lagos e por cima de pântanos pelo governo ditatorial de Pinochet, para ligar o antes isolado sul do Chile ao resto do país. Há não muito tempo, a única forma de transitar por essas partes era a pé ou a cavalo, passando por perigosas trilhas em beira de abismos – que digam os campesinos que perderam animais que escorregavam nas geladas pedras e caiam metros abaixo formando cemitérios em meio à paisagem.

Depois do difícil período que tive na viagem, ingressei nessa parte do Chile por Chile Chico, a maior cidade da região, com cinco mil habitantes e aí fui recebido por Ferdinando, um reconhecido guia turístico da zona. Por coincidência dei as caras justamente no dia de seu aniversário, e enquanto ele preparava a festa, fui com seu primo, Sérgio, andar de caiaque no lago de águas geladas. No meio do lago, tirou uma garrafa de Absolut de pera de seu caiaque assim como várias pedras de gelo e desfrutamos dessa saborosa mistura de Vodka e da pura água do lago, em completo silêncio em meio à natureza.

A festa foi bastante interessante e me permitiu perceber que terei que aprender um novo idioma aqui no Chile. O sotaque distinto, a velocidade de fala e os inúmeros modismos locais torna muito difícil a compreensão dos nativos desse longo e estreito país.

Ferdinando me convidou a acompanhá-lo em uma viagem que faria pelas cidades que estão às margens do lago entregando óculos de grau. Sua irmã, que possui uma ótica em Santiago, realizou junto com ele e uma médica oculista, um mutirão, atendendo a muitas pessoas dessa região que não tinham acesso a esse serviço e enfim os óculos estavam prontos para ser entregues. Obviamente aceitei o convite e o acompanhei por vários dias até a cidade de Coyhaique, capital da região de Aysén. Nesse período ele me mostrou muitas das paisagens escondidas pelas montanhas, além de me contar inúmeras histórias que tornam essa parte do mundo única, quase esquecida no tempo. Histórias essas que vou contar a vocês.

Começo com a história de um casamento, que de acordo com Ferdinando é real, e passou a menos de 20 anos atrás, período em que essa região muito se parecia aos filmes de velho oeste hollywoodianos.  Obviamente, mudei os nomes dos personagens, e cabe a cada um de vocês avaliarem e julgarem a veracidade do que lhes vou contar.

Além dessa, outros dois contos virão antes que eu conte a minha própria história por essas terras. Convido-lhes a entrar em um mundo de imaginação e fantasia que envolve esse mágico lugar. Com vocês, a história do “Casamento de Pato Diaz”.

***


Dia de feriado nacional, e como sempre nesta parte do Chile, dia de muita festa, e de maneira alguma os quatro inseparáveis amigos da pequena Mallín Grande iriam perder a festa na também pequena, entretanto mais movimentada, Puerto Guadal.

Cada um vendeu seus novilhos para encher o bolso com dinheiro e poder bem aproveitar o evento, afinal, não era sempre que tinham festas assim na região. Colocaram suas melhores roupas de típica do vaqueiro chileno, montaram em seus cavalos e partiram para a cidade vizinha.

Todos aproveitaram e beberam muito, e um deles, Francesco Di Giorgio, o mais estudado e loquaz, não demorou a arranjar companhia para aquecer-se na fria noite patagônica.  Outros dois, menos aptos aos jogos de sedução, Carlitos Fernandez e Leo Vélez, decidiram pagar pelos prazeres mundanos, contratando profissionais que exerciam o ofício mais antigo. Havia um, porém, Pato Diaz, o mais tímido do grupo, que ficou somente no bar, tomando uma dose atrás da outra, somente observando a festa acontecer. Por alguns dias, os amigos não voltaram a se encontrar.

Com esses dias passados não estando ainda distantes, Francesco se preparava, ainda de madrugada, para subir às montanhas com o pai, assim como costumava fazer todos os dias, para juntar os animais e começar o trabalho. Mas esse dia seria diferente dos demais, e ele percebeu isso quando recebeu a inesperada visita de Leo e Carlitos:

- Francesco, que está fazendo que ainda não está pronto?

- Claro que estou pronto, em um instante subo a montanha com o velho Di Giorgio.

- Mas como? Você não vai ao casamento do Pato Diaz?

- Como casamento do Pato? O pato nunca teve nem uma namorada!

- Nós também não sabemos, só passaram para nos avisar e disseram que nós três seremos as testemunhas do noivo!

Francesco atônito foi comunicar ao pai, para pedir-lhe permissão para ir, em um dia de trabalho, a fazenda dos Gutierrez, onde parecia que ia ser o casamento e o velho Di Giorgio lhe disse:

- Bom, se seu amigo se casa hoje, você tem mais que obrigação de estar presente!

E assim, partiu junto com Leo e Carlitos para a fazenda que ficava a mais de meio dia de viagem.

Ao chegarem, a festa já estava armada, a festa já estava armada. Muita comida, muitos convidados, o padre, a família Diaz, que por sinal portava uma expressão de descontentamento e resignação e a noiva, já pronta, vestida e maquiada. Identificaram-na pelo seu sorriso um pouco torto, que era a única filha mulher dos dez herdeiros de Álvaro Gutierrez, um dos povoadores mais temidos da região, pela sua fama de resolver seus problemas de forma um pouco inescrupulosa. Procuraram o amigo Pato por toda a festa e nada do amigo, mas já que estavam aí, com tantas mulheres, comidas e bebidas, que decidiram aproveitar.

As horas passavam e os convidados começaram a se perguntar se o noivo realmente viria, e igualmente estranhavam a ausência de Álvaro Gutierrez e todos os seus filhos, mas essa dúvida não pairou no ar por muito tempo, afinal, um dos irmãos da noiva apareceu dizendo que Pato Diaz estava pronto para casar.

Todos foram à capela e colocaram-se em seus devidos lugares. Nos primeiros bancos, à direita e à esquerda, as famílias dos noivos que agora se uniriam em uma só. A noiva, esperando em pé, à beira do altar, invertendo assim as posições tradicionais. Os padrinhos, Francesco, Leo e Carlitos, pelo lado do noivo e três senhoritas representando a noiva, postulavam-se já no altar, atrás e ao lado do padre.

Enfim apareceu o noivo, abatido, mancando, apoiado nos ombros de dois membros da família Gutierrez, vestido com um velho terno que notavelmente era grande demais para ele. Vendo o estado do filho, a senhora Diaz perguntou o que havia acontecido. Recebeu um olhar profundo do filho, mas uma resposta do velho Gutierrez:

- Nada. Apenas caiu do cavalo. Nada Grave.

Os três amigos se surpreenderam com a facilidade com que a mamãe Diaz aceitou a perceptível falsa explicação, e os dois irmãos deixaram o visivelmente desolado Pato, que mal conseguia sustentar-se sobre as próprias pernas, no altar ao lado de sua futura mulher, e escutaram a única palavra de seu amigo nesta noite, “sim”.

Estranhamente, como tudo nessa noite, Pato e a noiva, não se falaram e mesmo na hora do beijo, encontraram as bocas de forma rápida e constrangida. Pato teve, por toda a festa, integrantes da família Gutierrez como guarda-costas, que lhe enchiam o copo de uísque a todo instante e em pouco tempo Pato apagou e foi levado para dentro. A grande quantidade de bebida ajudou a descontrair todos os convidados e tudo acabou sem problemas.

***

Por muito tempo, quase três anos, os amigos não conseguiram falar com Pato, que se mudou para a fazenda dos Gutierrez e começou a trabalhar com o sogro. A distância de Mallín e o isolamento obrigado ao pobre Pato Diaz pelos Gutierrez impossibilitava qualquer forma de comunicação, até que um dia Francesco encontrou com o amigo e enfim pôde saber o que aconteceu.

Pato, que desde essa época conservava um expressão entristecida, comentou que em um dia como outro qualquer, estava dormindo em seu refúgio nas montanhas nevadas quando foi acordado com uma paulada que atingiu suas costas. Ainda meio dormindo, foi arrancado por vários homens de sua cama, e desnudo, levado para fora e jogado na neve e aí mesmo começaram a espancá-lo. Aturdido e sem saber o que acontecia, não tinha nem como perguntar o que estava acontecendo e só com o amanhecer do dia pôde identificar seus agressores: os herdeiros do velho Gutierrez, que assistia tudo a pouca distância.

Foi jogado, sem explicação nenhuma, sobre um cavalo e amarraram seus braços às suas pernas por baixo do ventre do animal e o cobriram com uma lona. Dolorido pela surra e pelas câimbras que a incômoda posição causava, Pato apenas rezava para ter sua vida poupada, afinal estava seguro que o estavam levando para um lugar onde pudessem se desfazer de seu corpo.

Após uma longa viagem, descobriram-no. Ele pôde perceber que estavam em um rancho e ouvia muitas vozes vindas de fora, mas não se atreveu a falar uma só palavra, afinal conhecia muito bem a fama do velho Gutierrez e por isso sabia que o velho não se intimidaria por um par de testemunhas. O velho disse:

- Você vai casar com minha filha, e não vai falar uma palavra sobre isso.

Pato, sentindo-se aliviado por saber que sua vida seria poupada, respondeu:

- Sim senhor, eu caso.

***

Somente algum tempo depois que o próprio Pato foi descobrir os motivos de tudo isso. Ana Gutierrez, agora sua esposa, havia saído da fazenda para terminar a escola fora da cidade e ao suspeitar de uma gravidez, voltou para sua casa, contou à sua mãe e pediu-lhe para guardar segredo e não contar ao velho Gutierrez. Por um tempo o segredo foi guardado, mas como a menstruação não veio, a pobre mãe não resistiu à pressão e contou ao pai da garota que não tinha mais que 17 anos.

O pai enfurecido e com a arma na mão foi conversar com a filha e a única palavra que saiu de sua boca foi:

- Quem?

A pobre e travessa Ana, muito assustada, sabia que tinha que dizer um nome, e sabia também que o nome do verdadeiro pai não resolveria visto que vivia muito longe dali. Mas havia dois garotos, mais velhos, que sempre despertaram sua atenção, o estudado Francesco Di Giorgio e o tímido Pato Diaz. Com todo o nervosismo não pôde lembrar o incomum nome italiano e lhe disse o único nome que lhe veio à cabeça:

- Pato Diaz.

***

Enganados estão todos que pensam que o sofrimento de Pato Diaz havia chegado ao fim.

Passado algum tempo do casamento, e depois de descobrir toda a história, Pato, ameaçado por toda a vida, já estava acostumando-se com a ideia e começando a aceitar o filho que viria e que não era seu, resignando-se a sua nova condição, mas o inesperado aconteceu: a menstruação veio e Ana descobriu que nunca havia estado grávida. Entretanto, isso não salvou a vida de Pato, que se não havia feito nada antes do casamento com Ana, já havia consumado o casamento, justificando agora outro motivo para não permitir-se a separação.

Mas nem tudo é desastroso na vida do pobre campesino patagônico, e apareceu uma grande oportunidade: ir trabalhar de vaqueiro nos Estados Unidos. Agarrou essa oportunidade e viajou para a América do Norte, deixando sua mulher e todos os Gutierrez para trás,  e todos os meses lhes mandava quase todo o dinheiro que ganhava, levando uma difícil, porém tranquila vida.

Tranquilidade que durou pouco. Depois de dois anos trabalhando sem ver nenhum familiar rosto chileno, recebeu uma notícia: sua esposa estava grávida e seu filho nasceria em poucos meses. Incrivelmente, e tristemente, Pato voltou dos EUA, reconheceu que o filho era seu, colocando nele o seu nome.

Mas as condições no Chile não estavam boas, e Pato teve que voltar a contragosto aos Estados Unidos, deixando dessa vez seu primo como responsável por cuidar sua esposa. Tudo correu bem pelos próximos dois anos, quando, sem explicar muito bem, sua mãe lhe disse que ele deveria voltar ao Chile urgentemente para resolver alguns problemas de família e sem obter de sua mãe maiores informações, voltou prontamente ao seu amado país. Encontrou sua esposa novamente grávida, de seu primo. Dessa vez, Pato não reconheceu o filho, chegando ao consenso de deixa-lo para adoção.

Pato decidiu não voltar mais ao país com idioma diferente do seu, e ainda hoje segue casado com Ana Gutierrez, que teve mais um filho, que dizem dessa vez ser realmente de Pato Diaz. Ainda vivem na mesma pequena cidade de Mallín Grande, às margens do Lago General Carrera, no sul da Carretera Austral, estrada construída em meio à fascinante natureza do sul do Chile pelo ditador Pinochet a cerca de 30 anos.

Pato já não busca outra vida, aceita pacificamente sua condição e, por poucas vezes, conta sua história com humor, que somente ele pôde conservar depois de tão difícil vida, atentando sempre ao fato de quem deveria estar casado era seu amigo Francesco Di Giorgio, que se salvou somente por ter um nome mais difícil de lembrar que o seu. E graças a Pato Diaz, conselho comum nessa região é nunca colocar um nome fácil em sua prole.

Acredito que nem mesmo Joseph Climber sofreu tanto, terminando sua vida como peso para papel.

Um abraço a todos,

Andejo.

sábado, 25 de junho de 2011

Buenos Dias, Caballeros

Mirador de las Aguilas - El Chaltén

Buenos días, caballeros. Señoras ¿Cómo les va? Fria manhã em Cerro Castillo, cidade localizada ao sul de Coyhaique, capital de Aisen, XI região do Chile. Estou de passagem por aqui, acompanhando um amigo que está visitando cada pequena vila entregando óculos de grau aos moradores, que dificilmente teriam acesso a esse tipo serviço se não fosse os esforços dos médicos que visitam cada rincón dessa isolada parte do sul do Chile, unida pela famosa, e mais impressionante do que se pode imaginar, Carretera Austral. É impressionante a formalidade deste povo que sempre trata às outras pessoas através de Don ou Señora. Imagina só, Don Demente – outro dia conto a história deste apelido, ou descubram por si só! Mas todas essas são histórias para mais tarde e que virão com muitas outras em uma semana que promete ser das mais agitadas neste blog. Se não querem se perder, estejam atentos! Buscando um mínimo de coesão, sigo em ordem cronológica e por isso, ainda falta explicar-lhes como cheguei aqui e como foram os desanimados dias que precederam o retorno da paixão que tinha pela estrada no começo desta história.
...

Após resolver todos os trâmites pendentes que diziam respeito ao capotamento, gastei mais alguns dias na cidade. Encontrei no mercado um brasileiro que havia conhecido no trekking para a base das Torres del Paine, e convidei-o para jantar conosco, no que seria o jantar de despedida das meninas, ao mesmo tempo que seria um jantar com especial significado religioso para a judia francesa. Depois disso, a busca por um bar para uma merecida e necessária cerveja.


No dia seguinte houve uma festa em comemoração ao centenário de Puerto Natales, que muito se pareceu a um carnaval de rua no Brasil, com carros alegóricos que muito - ou pouco, em alguns casos – tinham a ver com a cultura local. Para somar, havia ainda diversas bancas de comidas típicas locais e provamos diferentes tipos de choripan (pão com linguiça), empanadas e tortas fritas.

Enfim deixei a cidade, mas, enrolado como sou, somente comecei a pedir carona às 18 horas, já escuro nessa região. Por sorte, o primeiro carro que passou me levou até Cerro Castillo – outra cidade de mesmo nome que a atual, só que muito mais ao sul – e neste lugar cruzei a fronteira. Problemas: a fronteira argentina fica a 7 km de distância da aduana chilena, e em todo o dia passou somente um carro por ali, ou seja, tive que caminhar. A princípio caminhei com a luz da lanterna, mas depois caminhei na completa escuridão da noite sem lua, até alcançar a aduana argentina. Desde aí teria 6 km mais até a ruta 40, estrada que liga a Argentina de norte a sul, entretanto, não encontraria nada mais que asfalto e grama a menos de 60 km. Portanto, conversando com os militares da Gendarmeria, oficiais responsáveis pelas fronteiras, consegui um lugar para passar a noite ali mesmo.

Era a antiga sede do passo fronteiriço, que agora, abandonado, contava com vários cômodos vazios, algumas peles de carneiro jogadas pelos cantos e uma cama velha com um colchão que não estava em tão mal estado. Dormi maravilhosamente bem após tomar uma sopa quentinha, bem aquecido dentro do saco de dormir, acordando somente com a luz do sol, às 10 horas da manhã! Levantei-me e caminhei os 6 km restantes até a estrada. Em alguns momentos fui acuado por imensos rebanhos de vacas que me olhavam ameaçadoramente e mugiam em conjunto, aparentemente com o objetivo de amedrontar um possível predador, o que fizeram com extremo sucesso – os bezerros e as vacas mugiam enquanto se apressavam em se afastar, enquanto os touros com seus grandes chifres levantavam a cabeça e se viravam em minha direção, dando a sensação de que em qualquer momento, ou movimento em falso que eu desse, partiriam correndo em minha direção. Quem será que correria mais rápido: o touro enfurecido ou eu com minha tralha que totaliza 30 kg?

Felizmente cheguei a salvo à ruta 40, sem que nenhum touro sacana tirasse minha vida e aí esperei algumas poucas horas até conseguir uma carona direta a El Calafate, o que certamente foi um golpe de sorte! Algumas horas de viagem e eu entrava na linda pequena cidade, casa de pouco mais de 17 mil pessoas, e caminhando sem destino encontrei o hostel mais barato que conheci em minha vida, 25 pesos argentinos por noite, sendo a terceira noite grátis – totalizava cerca de 6 reais por noite – com café da manhã e wi-fi.

Passei bastante tempo neste hostel, num misto de preguiça e desânimo de seguir, acredito que quase 20 dias, e nesse tempo conheci alguns personagens: Eduardo, o dono do hostel, é uma boa pessoa, mas com uma personalidade difícil, como descobri ao final. Joel e Raul, dois moradores do lugar provenientes de Missiones, a província mais ao norte da Argentina, onde está a parte argentina das Cataratas do Iguaçú, são simples e confiáveis. Pablo e Sol, que saíram juntos de Ushuaia e fizeram a primeira parada de uma viagem, que como a minha, não tem data para terminar e, por fim, Ana, Tássia, Tamires e Marcela, quatro garotas brasileiras que faziam turismo na região junto com uma francesa, duas suíças e um sueco.

No segundo dia em El Calafate, tentei sem sucesso ir de carona ao glaciar e no terceiro dia, em teoria meu último na cidade, resolvi pagar pelo transporte. Valeu cada centavo. Depois de ver tantas belezas, pensei que, por mais que sempre apreciasse lindas paisagens, não iria me surpreender tanto novamente. Que ingenuidade. Um glaciar de 5 km de largura na parte frontal, formando uma parede de até 60 metros de altura e 200 km de extensão, surpreendeu-me de forma surpreendente, e tirei mais fotos do que um japonês tiraria, mas ainda sem obter êxito na tentativa de demonstrar o que meus olhos viam. Blocos imensos de gelo se desprendiam da imensa parede e caiam no lago formado somente a partir do degelo natural do glaciar, fazendo ruídos muito altos e calando as vozes dos turistas distraídos, roubando toda a atenção pelos segundos que durassem a reverberação. Conheci um inglês e compartimos o que tínhamos para comer – ele, uns pães que roubou de seu hostel no café da manhã, eu, duas cenouras!





Cheguei à cidade com o objetivo apenas de conhecer o Glaciar Perito Moreno e logo seguir viagem, mas fui ficando um dia a mais e mais um dia depois desse, e assim a cada vez e fui fazendo amizades. O primeiro foi o dono do hostel e logo lhe perguntei se tinha já uma página na internet e, recebendo uma resposta negativa, propus-me a fazer um blog. Entretido com os afazeres, fiquei uns dias mais e por isso conheci a Pablo e Sol, duas pessoas incríveis que saíram para viajar sem data para terminar. Eles também ficaram mais dias que o previsto e assim fizemos uma grande amizade. Pablo tem exatamente minha idade e é um artista. Malabarista, artesão e massagista, usa seus diversos conhecimentos para poder viajar, desde trabalhar de branco em um hotel massageando madames, até se sujar todo de fuligem enquanto está fazendo malabares com fogo no sinal. Sol é um pouco mais nova e está agora aprendendo também as profissões de Pablo – adorei ser cobaia nas aulas de massagem!


Logo que Pablo e Sol se foram, preparava-me também para enfim deixar a cidade, quando chegaram as brasileiras e seus amigos. Como é bom cantar uma canção e pelo menos uma pessoa conhecer a música! Matei a saudade de falar português e sentir a energia do povo brasileiro foi revigorante. Sem contar que poder desfrutar da culinária mineira estando tão longe dessa terra é maravilhoso! Eduardo então me fez uma proposta: convidar as garotas a ir a El Chaltén, uma pequena cidade próxima, em uma excursão e me daria uma porcentagem do valor arrecadado. Pareceu-me fantástico, visto que eu queria conhecer a cidade e não tinha grana para isso. Ir de graça já estava bom, ganhar para ir, melhor ainda. Conversei com as garotas e elas ficaram de pensar já que teriam voo marcado e não teria tempo suficiente, entretanto, como o vulcão no Chile estava ativo cobrindo os céus argentinos de cinzas, poderiam não embarcar e assim pensar na possibilidade.

Descobri por Eduardo, dias depois que o voo realmente havia sido cancelado e que as garotas iriam realmente para El Chaltén com ele, e ele me disse para ir junto. Embarquei contente, por que, por mais que eu imaginasse que não ganharia nada por não haver sido eu quem fechou afinal o negócio, ao menos iria também sem pagar e, no dia seguinte, embarcamos à mais nova cidadezinha da Argentina. Fizemos um lindo trekking nas montanhas que levavam a um dos pontos de observação do Fitz Roy, imponente montanha argentina, mas que infelizmente não pudemos vê-la desde aí, já que o tempo estava fechado além de bastante nevada – alguns caminhos inclusive congelados, que, na volta, eu e Tibo, o suéco, deslizávamos usando-os como tobogã. Tibo se foi nesse mesmo dia, e passamos uma noite, eu e as sete garotas, num quarto contando historias de terror! Devo enforcar-me se digo que não aconteceu nada? Quando digo que sou um santo não acreditam!












Voltamos a El Calafate e no dia seguinte as garotas se foram em ônibus a Buenos Aires porque os aeroportos continuavam fechados. Depois que partiram, fui arrumar minhas coisas e acertar as contas. Perguntei a Eduardo quanto lhe devia e me disse 150 pesos por 9 noites. Confundi-me e lhe disse que já havia pagado 100 pesos – o que realmente havia feito, mas que correspondiam a noites anteriores as que se referia ele – o que logo depois ele esclareceu e eu concordei, estando ele, de fato, certo. Ele me havia também emprestado 200 pesos na viagem, para não nos atrasarmos passando no banco, e afirmou que essa quantia eu não precisava lhe devolver, e assim como os 25 pesos da noite que passamos em El Chaltén, em uma das cabanas de seu filho, ficando esse valor como pagamento por haver convidado as garotas, como ele me havia prometido. Disse-lhe que não precisava, visto que eu não tinha feito muito ao final, porém ele insistiu e eu aceitei. Pediu-me também para colocar um preço no blog, o que recusei alegando que não havia feito pensando em cobrar, e, dada sua insistência, disse-lhe que pagasse o que lhe parecia justo. Novamente recusou.

Sem ter ideia do que valia o blog, não sabendo assim o que cobrar, perguntei a um amigo que trabalha com isso na Argentina, quanto ele cobraria para fazer o mesmo serviço, mostrando-lhe o blog. Respondeu-me que não menos de mil pesos. Decidi então, cobrar a metade de Eduardo, que descontando o que teria eu que pagá-lo pelos dias de hospedagem, me pagaria cerca de 350 pesos, ou, 140 reais. Contente por recuperar todo o dinheiro que havia gasto nesses dias na cidade, fui conversar com Eduardo, começando a lhe explicar o que meu amigo me havia dito, e quando lhe disse que o blog valia mil pesos, se alterou e me deu as costas, não esperando nem eu lhe falar que lhe cobraria apenas a metade disso. Disse-me que lhe haviam oferecido fazer um site profissional por esse preço, sem, em nenhum momento, deixar-me explicar que lhe cobraria a metade. Ofendido, perguntei-lhe quanto achava que valia e ele novamente disse que era eu quem deveria colocar o preço. Já bastante chateado, disse-lhe que apenas trocaríamos o blog pelos dias estadia que me faltavam pagar e fui dormir.

No outro dia decidi algo distinto, que apagaria o blog, que por sinal havia demorado muito para fazer, e que lhe pagaria o que lhe devia, já que agora ele considerava ruim o blog que tanto havia elogiado. Pedi para conversar em particular e ele negou, e ao explicar-lhe, em frente a Raul, meus motivos para tal decisão, dizendo-lhe que me havia ofendido com suas afirmações e tom de voz, novamente não me deixou terminar, dizendo que era eu quem lhe havia causado uma grave ofensa, ao tentar roubar-lhe dinheiro, quando tentei de forma intencional, segundo ele, enganá-lo, dizendo que já lhe havia pagado parte de minha estadia quando na verdade não o havia feito. Sem palavras e, agora sim ofendido de verdade tentei em vão argumentar, mas, como já era de praxe, não escutou uma só palavra. Engoli em seco tentando me acalmar. Busquei minhas coisas e lhe dei 200 pesos, todo o dinheiro que tinha em minha carteira e escutei de forma surpreendente: e a viagem a El Chaltén, você não pensa em pagar? Com lágrimas nos olhos e sem um peso comigo para ao menos pagar-lhe por orgulho, despedi-me de Joel e Raul, levando de El Calafate, além das boas experiências, dos dias de desânimo e das lindas paisagens, a primeira acusação de roubo de minha vida.

Caminhei vários quilômetros chorando; por meu nome, pelas falsas acusações, pelos nervos, pela saudade, por toda carga que vinha carregando, segurando minhas emoções nos últimos tempos, desde que ficamos sem bateria no parque, mais tarde tratando de acalmar as garotas após capotar, colocando-me também como reconciliador após elas discutirem no alto da montanha ou após pagar por um seguro mais do que gasto em dois meses de viagem.

Mesmo não tendo feito nada do que havia sido acusado, pedi a Eduardo perdão pelas ofensas que lhe havia causado e escutei: “O que fez não tem perdão, conheci vários brasileiros e você foi o primeiro mau-caráter. Ainda mais depois de tudo que fiz por você.” Basicamente, depois de humilhar-me, buscando a humildade que manda a sabedoria, fui pisado. Mas no caminho, saindo da cidade, mesmo muito chateado e ofendido, percebi que mesmo que ele não tenha pedido perdão, ou mesmo que ele não tenha ao menos consciência das ofensas que me causou, senti pena, e lhe perdoei. Hoje, tenho a impressão que mais triste que ser ofendido, é ofender, é fazer acusações vazias, ou julgar baseando-se em falsas premissas ou apenas em impressões de uma realidade que na verdade não existe.

Percebi que a melhor forma de ficar bem comigo mesmo não era através da raiva, da mágoa, da ira e decidi, não somente deixar o blog no ar, mas também terminá-lo, melhorá-lo, além de, não importando o que é justo e aceitando o julgamento de quem se considera juiz, encontrar uma forma de pagá-lo pela viagem a El Chaltén.

Quantas coisas aconteceram nesse curto período. Levo dessa parte do mundo muitas lembranças, boas e más. Vivi ali o único período em 18 meses que pensei em desistir e voltar ao velho mundo em que vivia. Vivi meu primeiro acidente de carro. Conheci pessoas fantásticas e vivenciei com elas coisas que nos conectarão, independente de nossas vontades, pelo resto da vida. Como vou esquecer-me da expressão do rosto de minha nova amiga alemã, instantes depois de capotar o carro, ainda flutuando, pendurado pelo cinto de segurança? Como vou esquecer o fato de haver sido acusado de roubo, poucos momentos depois de ter sido chamado de quadrado por uma amiga, após a reprimir por haver cometido um pequeno roubo, a seu ver, sem importância?


Mas, sem dúvida, vou levar dessa inesquecível região de paisagens únicas, um grande aprendizado. Afinal, não é isso que venho sempre buscando?

Um grande abraço a todos,

Andejo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Meus Melhores Piores Dias...

Torres del Paine

Cada dia mais difícil fechar a mala e seguir viagem, deixei Punta Arenas rumo à Puerto Natales e em pouco mais de 3 horas de estrada alcancei meu novo destino e logo fui em busca do hostel Erratic Rock, no qual me receberia Bill, mais um amigo de minha prima Sheila, que também foi a responsável pela minha cômoda estadia na casa dos grandes Dusan e Anahí, mas, antes de encontrá-lo fui abordado na deserta rua principal da pequena cidade. Três garotas, Maria, espanhola, Susanne, alemã e Shoshana, francesa me pararam na rua, cerca de onze da noite e a primeira coisa que falaram foi: "Que vai fazer amanhã?"  

Conversamos e, em pouco tempo, convenceram-me a alugar um carro com elas para juntos irmos ao parque Torres del Paine na manhã seguinte - dividir o aluguel era vantajoso para elas e para mim, afinal sairia mais barato pagar 1/4 do carro do que pagar uma excursão e combinamos de nos encontrar na manhã seguinte - e então me acompanharam ao hostel. As três são intercambistas que estão estudando em Santiago, e estão matando aula para fazer uma viagem de despedida para Susanne que irá voltar a Alemanha em pouco tempo.

Bill, um personagem. Americano nascido no estado do Oregon, decidiu, depois de viajar e morar em diversos lugares do mundo, abrir um hostel nessa pequena cidade que vive do grande movimento turístico gerado por Torres del Paine, considerado um dos parques nacionais mais bonitos do continente sulamericano. É responsável por receber turistas e mochileiros do mundo todo e o faz com seu espanhol com forte sotaque estrangeiro. Cara vivido, tranquilo e muito boa gente que me recebeu como família.

Carro Alugado

Guanaco, visto em toda patagônia.


O dia seguinte amanheceu ensolarado, tempo propício para visitar o parque. Pegamos o carro, conseguimos até um bom desconto, compramos comida, afinal decidimos passar uma noite no parque e pegamos a estrada. Duas horas foram suficientes para chegar e na primeira fascinante paisagem paramos para tirar algumas fotos. Parada rápida, não mais de 15 minutos, e voltamos correndo para o carro para fugir do frio, mas o carro não pegou - a bateria estava morta. Descemos com o carro desligado por um pequeno vale até perto de um rio onde havia uma bifurcação e decidimos esperar ali por ajuda, entretanto ela não veio e ali tivemos que passar a noite. Conversamos, dançamos, comemos, caminhamos no escuro - longas noites de inverno na patagônia austral - tocamos violão, contamos estrelas e tudo mais o que podíamos fazer para passar o tempo.  Quando o frio se tornou insuportável, entramos todos no carro e organizamos tudo para estar o mais confortável possível - levantamos os bancos, empilhamos as mochilas, forramos o piso -  e conseguimos alcançar ao menos a categoria "muito desconfortável".

Sem bateria.

Em um momento de introspecção comecei a pensar como havia chegado ali, o que fazia ali e como são loucas as coisas que as viagens me proporcionam. Em uma noite estava em uma casa confortável em momentos preguiçosos na companhia de dois calmos chilenos, e na noite seguinte, dormindo num carro alugado, sem bateria, no meio de um dos mais extensos parques nacionais que existe com três loucas europeias. Essas mudanças bruscas de realidade são como uma história sem coesão e tenho muitas vezes a impressão que atravessei um túnel e saí em outra realidade.

Dormi no encosto dobrado do banco, mas não mais desconfortável que as garotas que se espremeram em outras partes do carro - sempre tinha um cotovelo na cara de alguém, ou quem sabe um joelho nas costas e quando necessitávamos nos esticar tínhamos que fazer uns por cima dos outros - e como era de se esperar não foi a noite de sono mais restauradora do mundo. Pela manhã não encontramos sinais de que alguém houvesse passado por ali e decidimos que deveríamos buscar ajuda. Escrevemos um bilhete dizendo aonde iríamos, deixamos no carro e seguímos caminhando à Laguna Azul com esperanças de encontrar alguém que pudesse nos auxiliar. Caminhamos algumas horas e encontramos um guarda parque que chamou a locadora de veículos e convidou-nos a esperar aquecidos dentro de sua casa até que chegasse o socorro.


Outro tipo interessante. Um ano mais velho que eu, Rafael cresceu no parque, na companhia de outras cinco crianças. Depois de se casar, mudou-se para a cidade, mas essa mudança não lhe fez bem, arruinou seu casamento e então voltou ao parque, onde passa vários dias isolado e estranhamente se sente melhor aí que em seus poucos dias de folga quando desce à pequena Puerto Natales. 

Shoshana, Susanne, eu e Maria

Na metade da tarde o socorro chegou e ficamos indignados em, além de ter perdido quase dois dias, ainda ter que pagar pelo conserto do carro. Discutimos e chegamos há um acordo aceitável, ficaríamos uma noite mais no parque, mas perdemos uma integrante, Shoshana, que decidiu voltar a Natales e não subir, no dia seguinte, até as base das Torres em um trekking de 8 horas, ida e volta. Voltamos à Laguna Azul e fomos convidados por Rafael a dormir em sua casa, o que nos salvou de outra dura noite de frio e desconforto. Ainda nos convidou a jantar e nos preparou uma fantástica comida caseira, contrabalanceando a má sorte anterior.

Anoitecer em Laguna Azul.

Felizes por finalmente estar perto de subir ao mirante, nos despedimos do guarda parque na manhã seguinte e  subimos no carro torcendo pra que pegasse. Pegou. Fui dirigindo me divertindo provando a tração das 4 rodas nos buracos cheios de água e gelo das estradas de terra e pedras no interior do parque até que paramos novamente para tirar outras fotos mais. 

Pré acidente.

Não, felizmente não ficamos novamente sem bateria. Perguntei a Susanne se queria dirigir e ela aceitou. Após uma curva em declive, passamos por muitos buracos consecutivos, ela perdeu o controle e saímos da estrada. Em meio a gritos - tudo aconteceu muito rápido - ela voltou a girar o volante na direção contrária para voltarmos ao curso correto, mas o carro rodou e capotou. Susanne e Maria tiveram um ataque nervoso, e enquanto Susanne ameaçava chorar com uma cara muito assustada, Maria ria sem parar. Eu, flutuando preso pelo cinto de segurança, agradecia por haver pedido para Maria colocar também o cinto no banco de trás e pedia para Susanne acalmar-se e desligar o carro, já que vazavam óleo e combustível. Ninguém teve sequer um corte e saímos todos pelo teto solar do veículo que estava deitado na estrada. Maria, já muito mais calma me ajudava a tentar a acalmar Susanne, que ainda estava muito nervosa e se culpava pelo que aconteceu enquanto dizíamos que havia sido um acidente, que poderia haver passado a qualquer pessoa. Poucos instantes depois, uma caminhonete com um funcionário de um hotel da região passou por ali e nos ajudou a desvirar o carro. Os pneus estavam destruídos, assim como um dos retrovisores, além do combustível e do óleo que vazou, e não poderíamos continuar, não com o automóvel.

Susanne. Momentos pós-acidente.
Desvirando o carro.
Low Battery and Fucked

Em uma rápida reunião para avaliar a desastrosa viagem ao parque que possui corretamente a fama de ser inesquecível, ponderamos todo o dinheiro que teríamos que pagar pelos danos, MUITO, e tudo que havíamos visto do parque, NADA. Creio que é importante comentar que Susanne queria se responsabilizar sozinha pelos custos, mas eu e Maria rechaçamos imediatamente a ideia, afinal todos nos responsabilizamos quando decidimos alugar juntos o carro. Nesse momento chegamos somente a um consenso, subiríamos ao mirante do mesmo jeito, como uma última tentativa desesperada de fazer essa viagem valer a pena. Pedimos então ao senhor que nos ajudou que chamasse novamente à locadora de veículos e avisasse sobre o acidente e pedimos que nos viessem buscar às 7 horas da noite, horário que já deveríamos haver voltado ao hotel onde começa a trilha.

Hotel Las Torres
Começando a subida.

Começamos a subir, e subir, e subir, e a cada instante tinha a impressão que não voltaríamos a tempo, mesmo assim continuamos. Fizemos a primeira parte em um tempo inferior ao estipulado e isso nos motivou a seguir, combinamos de caminhar até o próximo acampamento e então reavaliar o tempo restante para saber se subiríamos ou não até o mirante. Novamente fizemos em menos tempo do que pensávamos, mas da mesma forma não sobrava muito tempo. Susanne queria voltar, Maria queria seguir. Eu queria seguir mas achava que tínhamos que voltar. Decidimos subir apenas um pouco a parte mais íngreme onde pararíamos para comer com uma visão um pouco melhor das Torres, que já pareciam tão próximas. 

Entretanto, quando começamos a subir, Maria decidiu seguir e Susanne se revoltou, acusando Maria de egoísmo, e as duas começaram a discutir. Depois da discussão Susanne começou a subir mais rápido, enraivecida e com o objetivo de ficar sozinha, e Maria, observando sua reação, decidiu que não tinha mais vontade de subir porque não estaríamos todos felizes lá em cima. Por que as mulheres são tão complicadas? Conversei com Maria, e depois com Susanne e elas voltaram a ter uma conversa onde pareciam haver ajustado as coisas, ao menos parcialmente e seguímos a subida. Para ajudar, o caminho piorava a cada vez, com gelo e muita neve cobrindo todas as pedras, não nos permitindo portanto, saber onde pisávamos, o que nos atrasava ainda mais. 

Terminando a subida.

Ao avistar um trecho que parecia bastante difícil, ao mesmo tempo que não avistava o final da trilha, pedi para que esperassem que eu verificasse o caminho e se parecesse muito difícil, voltaríamos daquele ponto. Caminhei apressadamente na neve, saltando pelas rochas quando possível e em não mais de 5 minutos cheguei ao final da trilha. Nem olhei a paisagem e assim como fui, voltei até onde tinha deixado as garotas. Com minha afirmativa, seguímos e pouco depois chegamos enfim ao "Mirador de las Torres" e pela primeira vez desfrutei uma linda paisagem no alto de uma montanha acompanhado de alguém. 


Nesse momento, esquecemos dos problemas, dos conflitos e sentimos que não importava as dificuldades que havíamos passado, sentíamos que havia valido a pena. Uma linda lagoa de águas de um azul-esverdeado intenso, cercado de montanhas nevadas, contrastando com o azul do céu que poucas nuvem tinha, tendo como protagonistas as três torres que dão nome ao parque que justifica a visita de milhares de visitantes a essa erma parte do planeta, um pedaço do chile isolado do mundo, onde a natureza é respeitada e preservada e é capaz de fascinar qualquer pessoa, não importando o que haja visto ou provado anteriormente, dada sua magnitude.


Ao descrever essa cena, as imagens e sentimentos voltam à cabeça e me sinto cansado em lembrar que ainda teríamos que percorrer novamente todo o caminho. Com pouco tempo, visto que o sol já estava baixo, começamos a caminhar. Nas partes mais fáceis comumente corríamos e voltamos incrivelmente rápido até o seguinte acampamento, e com cada vez menos luz, já tivemos que acender as lanternas para percorrer a última parte. Aos poucos o céu enegrecia e, uma por uma, saltavam as estrelas na noite sem lua. Estávamos indo bem, chegaríamos no horário. Enfim terminamos o trekking, chegamos à planície, entretanto, na parte mais fácil do percurso, nos perdemos pela completa falta de visibilidade, e depois de diminuir quase pela metade o tempo estimado de descida, perdemos cerca de 1 hora e meia em um caminho que deveria tardar não mais de 10 minutos e ao chegarmos ao hotel, o socorro já havia partido com todas as nossas coisas, deixando-nos somente com a roupa do corpo e nenhum equipamento. Pedimos abrigo no hotel e nos deram uma refeição que nesse momento parecia um banquete, arroz com ovo e salsicha, além de nos darem também um lugar quente para dormir, que foi um dos quartos de empregados, já que o hotel estava fechado. 

Enfim, no dia seguinte, com duas caronas, voltamos a Puerto Natales. Fomos à locadora e pagamos os prejuízos. Tenho quase certeza que nos cobrou mais do que deveríamos pagar, mas nenhum de nós estava disposto a ficar na cidade para verificar nossos direitos e afinal, tivemos que pagar menos do que imaginávamos, por mas que tenhamos pagado muito. Pra quem já estava no limite dos gastos esse foi um duro golpe, entretanto não me sinto no direito de reclamar. Em um ano e meio de viagem, posso dizer que essa foi a única coisa ruim que me aconteceu, e os prejuízos foram somente financeiros. Além de mais uma inesquecível história pra contar para os meus sobrinhos quando eu voltar, posso dizer que fiz amizades pra toda a vida, que independente das diferenças das pessoas que estiveram ali dentro do carro nesse dia, e que depois subiram juntos essa montanha, estreitamos e embasamos um laço de amizade, confiança, solidariedade e respeito mútuo. Tenho certeza que quando olhar o passado, lembrarei dessas pessoas com admiração, que é a base de oitenta por cento de minhas amizades. Posso dizer então, quem sabe, que esses foram os melhores piores dias dessa viagem que completa hoje 18 meses.  

Neste momento estou em El Calafate, passei 15 dias aqui. Visitei também El Chaltén. Mas essas são histórias pra uma próxima postagem, afinal, tanto isso que contei hoje, quanto o que vivi nos últimos dias, merecem atenção especial e capítulos diferentes. Amanhã devo seguir ao norte, enfim em direção à Carretera Austral, a famosa estrada no inóspito sul chileno construída por Pinochet, espero não ter problemas com o vulcão...

Grande abraço,

Andejo.